Maria Montessori

INDIVIDUAÇÃO E SOCIALIZAÇÃO NA PEDAGOGIA DE MARIA MONTESSORI
POR: Maria Graziela Peregrino (Diretora do Departamento de Psicologia Social do IJNPS)

1. Preliminares
Para se aplicar os princípios decorrentes da pedagogia montessoriana, é preciso conhecer os fundamentos filosóficos em que a mesma se estruturou, e para melhor avaliar a contribuição da sua pedagogia é necessário conhecer, de algum modo, a época em que viveu Maria Montessori, procurando analisar as principais tendências culturais do seu tempo. Tão rica foi e continua sendo a contribuição psicopedagógica de Maria Montessori – não obstante as distorções pedagógicas e didáticas que, freqüentes vezes, se cometem em seu nome – que, nos limites de um artigo, difícil se torna condensar o que é mais representativo na linha do seu pensamento, com relação, especialmente, à criança. Daí a escolha que recai nos tópicos principais que passo a abordar, no presente trabalho, procurando localizar na pedagogia montessoriana um apoio às experiências metodológicas que se empreendem, nos dias atuais, com base nos seus escritos – obras e conferências, principalmente – e que constituem o seu legado científico, sem esquecer a sua notável contribuição no campo da prática educacional. Assim, o grande desenvolvimento que a pedagogia montessoriana vem alcançando, nos dias atuais, num movimento de refluir do seu pensamento pedagógico, agora em contato ainda maior com as modernas tecnologias de ensino, demonstra que é aplicável, em nossos dias. Eis porque se pode entender o novo surto de pedagogia montessoriana em vários países da Europa – como a Holanda, a Itália, a Inglaterra – como em diferentes países das Américas, onde se multiplicam as escolas chamadas (ou realmente) montessorianas, numa demonstração de vitalidade dos princípios que nortearam a sua pedagogia. Por isso, Helena Helming, uma grande conhecedora da obra de Maria Montessori, não hesitou em afirmar que “os postulados pedagógicos de Maria Montessori e a sua fé no dinamismo da infância se antecipam à ciência antropológica e psicológica do nosso tempo”. A seguir, tentarei interpretar o pensamento de Montessori no que diz respeito à individuação e à socialização, entendidas essas concepções no conjunto das suas obras e, por extensão, na prática pedagógica que ela desenvolveu, sob formas diversas, em sua longa experiência profissional de médica e educadora.

2. Individuação
A título de esclarecimento preliminares, vale registrar que Maria Montessori apresenta, em um dos seus livros fundamentais7, a renovação que se processou, na Itália, nos métodos de instrução e educação, especialmente depois de 1880, com o professor José Sergi, o qual tanto influiu na formação pessoal de Maria Montessori, numa perspectiva científica de experimentação. Graças à orientação dada por Sergi, como renovador dos métodos de educação, Maria Montessori aprofundou os seus estudos no campo da antropologia física, conforme a autora o menciona 7:9, salientando-se que José Sergi, no livro “Educação e Instrução” preconizava o estudo da antropologia pedagógica e da psicologia experimental, para conduzir o educador a uma verdadeira renovação de métodos. Seja lembrado que José Sergi (a quem tanto deve a formação científica de Maria Montessori) estava convencido de que educar o indivíduo é ação decorrente da experiência. Sua orientação, todavia, provocou perplexidade entre os seus contemporâneos, até mesmo entre os seus discípulos, pela confusão que se estabelecera entre o estudo experimental do escolar e sua educação. Ocorreram esses fatos na época em que se passou a denominar de pedagogia científica à antropologia pedagógica, enquanto as escolas e os autores de pedagogia científica enfatizavam o uso sistemático das medidas em educação*, como uma atitude de mais exigência metodológica e crítica, diante dos fatos da conduta humana, no processo educativo. Paralelamente, em outros países da Europa ocidental, como na França, na Inglaterra, na Alemanha, e, também, nos Estados unidos, ocorria uma verdadeira movimentação, no campo educacional, com referência à adoção de métodos rigorosos de observação e experimentação, relativamente à conduta dos seres humanos. É necessário focalizar esses aspectos, para pôr em relevo as grandes linhas das tendências pedagógicas que se manifestaram, no sentido de uma renovação da pedagogia tradicional, até então mais voltada para os aspectos formais do ensino. Convém citar os estudos de Wundt e de Binet, em fases diversas e em países diferentes, mas que contribuíram para a constituição e fortalecimento de uma pedagogia científica centrada no indivíduo, ou nas chamadas “diferenças individuais”. Notável foi a contribuição de médicos junto a educadores, pedagogos e psicólogos, para que houvesse, no final do século XIX, e, de modo mais ostensivo, nos começos do século XX, uma convergência de estudos e de experiências (até mesmo em laboratório), renovando, de modo interdisciplinar, a pedagogia, que, progressivamente, ia modificando e reduzindo a conotação filosófica dos textos e dos livros adotados. O interesse crescente da pedagogia científica pelo indivíduo, como ser original, em suas ações e interações, era substancialmente auxiliado pela contribuição das pesquisas em laboratório, o que, em última instância, redundou em uma tomada de posição: uma estruturação científica para a pedagogia. A penetração em novas vias experimentais possibilitou, aos educadores, aos pedagogos e aos autores de psicologia e de antropologia física, uma visão mais objetiva dos problemas da conduta humana, sem que essa orientação, “per se”, significasse uma negligência do fato educativo em sua visão profunda, de natureza filosófica.* A esse respeito, vale ressaltar o conteúdo do livro de Maria Montessori, aliás pouco citado, que é: “Antropologia Pedagógica”. Assim, consideradas as condições do ambiente cultural em que se verificou a formação universitária de Maria Montessori, é possível perceber as grandes linhas que configuraram a sua posição na pedagogia, no começo do século XIX. Provavelmente, os fatores citados, quanto à sua formação profissional e científica, aliados à agudeza crítica do seu pensamento, contribuíram, de modo positivo, para que o seu “interesse pelas manifestações dos fenômenos naturais”7:12 fosse dirigido, não apenas por intuição, de modo empírico, mas por uma verdadeira ordenação metodológica, fundamentada na constatação dos fatos. A observação e a experimentação, recursos metodológicos preconizados desde os mais remotos tempos, reexaminados pela lógica de Francis Bacon, no “NOVUM ORGANUM”, encontraram, na educadora e pedagoga Maria Montessori, uma acolhida plena, pois não apenas usou aqueles recursos, como os ajustou à situação escolar, aplicando-os aos anos da infância, que antecedem a escolarização. Donde o seu trabalho com crianças então consideradas na fase da 1ª infância. Maria Montessori fez-se, desde cedo, portadora de uma confiança total na criança, pois ensinava, nos seus livros, nos cursos e conferências, que a criança é capaz de aprender, de absorver* o que os seus sentidos captam do ambiente, nas interações múltiplas com as pessoas. Era, portanto, preciso acreditar na criança que aprende, absorvendo conhecimentos e experiências. Eis uma posição de psicologia da aprendizagem que, nos dias atuais, encontra apoio teórico e experimental na significação do autoconceito positivo, como forma de expressão individual. Aquela tomada de posição por Maria Montessori, assumida no seu mencionado livro (“A mente absorvente”, como foi traduzido, em edição brasileira) muito significa como atitude teórica e como ponto de partida para os estudos que ela realizou com crianças normais e com as portadores de deficiências física e/ou mentais. * Daí o título de um dos seus livros “L’esprit absorbant de l’enfant – texte français de Georgette J.J. Bernard, Bruges, Desclée de Brouwer, 1959. No decorrer da sua multiforme experiência em escolas e em clínicas, a ilustre autora teve oportunidade de testar os princípios pedagógicos que adotou, na sua prática profissional. Entendo que a sua atitude científica profundamente inovadora, repercutiu, de modo decisivo, nos destinos da pedagogia italiana, sobretudo no começo do século XIX (com a famosa experiência de “Case dei Bambini, 1906/1907/1908) irradiando influência para outros países na Europa, na América e até, de modo muito especial, na Índia, onde a presença de Maria Montessori deu origem a um grande número de experiências pedagógicas, além de traduções, em inglês, dos seus livros. Vale analisar uma das colocações de Maria Montessori, para um reexame, hoje, à luz da psicologia da aprendizagem: o mestre “aprenderá da própria criança os meios e o caminho de sua própria educação, isto é, aprenderá com a criança a se aperfeiçoar como educador”.7:14 Desse e de outros pontos de referência, decorrem as aplicações práticas que caracterizam a pedagogia montessoriana, de modo especial no que concerne à individualidade e à liberdade na educação da criança, elementos balizadores de sua pedagogia centrada, não apenas de modo etimológico, mas de modo real e objetivo, na própria criança. Ainda é Maria Montessori quem escreve, de modo corajoso, sobretudo para a sua época, sabendo-se quanto e como foi combatida no seu próprio país), ao afirmar: “É preciso que a escola permita o livre desenvolvimento da atividade da criança, para que possa nascer a pedagogia científica; eis a necessária reforma”.7:15 Em outra passagem, Maria Montessori acrescenta um comentário, vazado em tom de profunda crítica à pedagogia então vigente: “Um princípio de repressão que vai até a escravização conduz uma grande parte da pedagogia, e, portanto, da escola”.7:15 Ainda combatendo a “escola decadente” do seu tempo, 7:16 criticou aquilo que chamara de “leis arbitrárias” do adulto, as quais, no seu lúcido entender, faziam a “escravidão do espírito”. 7:17 Desse modo, baseada em tais princípios e em tais posições de ordem prática, Maria Montessori acreditava que deveria seguir um caminho diverso do que havia tomado, até então, a grade maioria dos educadores. Daí a importância que ela atribuía à preparação dos professores, em consonância com a transformação cultural da escola, numa sociedade em mudança.
Seus propósitos, a esse respeito, podem ser condensados nas seguintes colocações:

1) preparar mestres capazes de observar e de realizar experiências, na convivência com crianças;
2) permitir o desenvolvimento das manifestações espontâneas da criança respeitando-se a sua personalidade;
3) construir uma pedagogia centrada no estudo da individualidade do escolar, partindo da observação de crianças que se expressam livremente.
Assim, as crianças podem ser estudadas e não comprimidas. Para fundamentar sua argumentação, Maria Montessori usou uma analogia extraída das ciências biológicas. Em outras palavras, afirmou que, assim como a bacteriologia deve suas descobertas ao isolamento de “vírus” e à cultura de bactérias, assim também a pedagogia e a medicina muito devem à aplicação de métodos antropométricos a indivíduos de diferentes condições. 7:21 Em face dessas colocações tão realistas, evidencia-se o valor que Maria Montessori atribui aos métodos renovadores usados na pedagogia experimental, o que significa, por certo, naquela época do final do século XIX, uma visão clara e interdisciplinar, dos conhecimentos da pedagogia e das ciências auxiliares. Não foi sem objetivo definido, que ela preconizou a integração da pedagogia científica com a higiene, a antropologia e a psicologia, ressaltando-se, neste enfoque interdisciplinar, o estudo do indivíduo, como sujeito capaz de se educar e de crescer, tanto no plano pessoal, como no social. Durante o tempo em que Maria Montessori trabalhou como Assistente da Clínica de Psiquiatria da Universidade de Roma, teve oportunidade de atuar em clínicas para doentes mentais, portadores de diversas deficiências. Trabalhou, sucessivamente, com pacientes capazes de recuperação, ou de reabilitação, em clínicas diversas. Sua atenção profissional e seu interesse especial voltam-se, de modo marcante, para as crianças deficientes, campo em que ofereceu uma vasta contribuição, como médica e como educadora. Em uma das suas afirmativas, Maria Montessori assim se expressou: “Eu tive a intuição de que a questão dos deficientes era mais de natureza pedagógica do que médica”. Movida por aquela convicção, apresentou em um Congresso Pedagógico, em 1898, realizado em Turim, uma importante comunicação sobre o assunto. Após aquele evento científico, Guido Bacelli, professor de Maria Montessori, convidoua a dar um curso, em Roma, sobre a educação das crianças infratoras, o qual deu origem a renomada Escola Ortofrênica, que ela passou a dirigir. A seguir, foi criado um Instituto pedagógico, que recebeu crianças “doentes mentais” do Hospício de Roma, ao mesmo tempo em que intensificava o trabalho de preparação do professorado, o qual era treinado para melhor observar as crianças então chamadas de infratoras. Para alargar a sua experiência, Maria Montessori fez diversos estágios em Londres e Paris, com o objetivo de analisar a conduta das crianças deficientes, em outras condições culturais. Modestamente, escreveu que aqueles estágios lhe valeram o seu “verdadeiro título no campo da pedagogia”, 7:23 pela soma de ensinamentos práticos que lhe proporcionaram. No período de 1898 a 1900, suas experiências em educação ganhavam novas dimensões e levaram-na, com a sua formação científica de médica, a uma posição singular, na pedagogia européia. Por uma espécie de intuição, após os bons resultados verificados na aprendizagem de crianças infratoras, Maria Montessori achou que era tempo de usar novos procedimentos, por analogia, com as crianças consideradas normais, para testar a eficácia do seu método. Neste particular, é preciso não esquecer a influência que exerceram, na formação intelectual de Maria Montessori, dois autores de épocas diferentes: Itard, que fora aluno de Pinel, e Edouard Séguin. Pela grande soma de fatos que marcaram a formação intelectual e profissional de Maria Montessori, bem se pode aquilatar o valor de sua pedagogia científica para o estudo profundo da individualidade, bem como para a afirmação da personalidade, na vida social. Sua preocupação – de médica e de educadora – estava centrada na personalidade da criança e do adolescente, campo matricial dos seus trabalhos tanto teóricos, como práticos. Isso é o que evidencia, após uma análise exaustiva do conjunto de sua obra pedagógica, a qual, no meu entender, poderia ser chamada, sem impropriedade, de “pedagogia médica”, pela valorização que ela atribuía ao desenvolvimento psíquico e social, como também ao desenvolvimento orgânico. Além disso, convém ressaltar que a valorização do trabalho individual do educando, na obra montessoriana, não lhe fechou o acesso a outros aspectos, igualmente válidos na educação, como é o processo de integração do indivíduo na sociedade. Merece relevo que, no conjunto da pedagogia montessoriana, o que se chama, freqüentemente, de processo de individuação é mais do que isso: é, na realidade, um processo de personalização. De valorização da pessoa, que sente, que pensa, que quer, que trabalha, que cria, que se projeta na sociedade. Daí o alcance de sua pedagogia: não confinada a metodologismos, mas aberta a uma formação do homem, como pessoa, vivendo, em integração consciente, com a sociedade. De Séguin são importantes, para a compreensão da pedagogia de Maria Montessori, pelo menos as duas obras abaixo citadas: “Traitement moral, hygiène et education dês idiots”, Paris, 1846 e “L’idiotie et sés traitements par la méthode physiologique”. (1866).

3. Socialização
Após o que foi delineado, no tocante ao processo de individuação (que, em última instância, conduz à personalização), é possível depreender que a obra pedagógica montessoriana não se limitaria a projeções meramente individuais. Em uma seqüência de assuntos e de colocações práticas, teria que abranger os aspectos sociais da formação da criança e do adolescente. Uma visão realista da natureza humana não poderia restringir-se ao indivíduo, como indivíduo. A ênfase na personalização é um ponto de partida para o que se chama de socialização em pedagogia, que é, em suma, o processo de integração consciente do indivíduo na sociedade. Não na sociedade tomada como uma abstração. Mas na “sua” sociedade, que é a sua comunidade social, concreta, aqui e agora, onde vive e interage com os seus semelhantes, em um processo contínuo de aperfeiçoamento individual e social. Daí a importância que Maria Montessori atribuiu, nos jardins da infância, aos processos de desenvolvimento social das crianças, o que, em terminologia pedagógica, ficou conhecido com o nome de socialização, fato que fora ressaltado na pedagogia de Froebel e de outros autores, favoráveis ao “kindergarten”. Tentarei apresentar, em grandes linhas, o que se entende por socialização (da criança, sobretudo), na obra pedagógica de Maria Montessori. Inicialmente, é preciso fazer alguns comentários que ajudarão a compreender certos aspectos fundamentais da sua pedagogia. Lembro, como aliás adverte de modo pertinente, Helena Helming,2 que Maria Montessori entende a pedagogia como elemento vital, pois a vida é uma automação, a partir do interior. O homem constrói-se a si mesmo, pois é dotado da singularidade de um comportamento. Esta construção de si mesmo só se torna possível se a criança se move (ou atua) no meio social em que vive. O conceito de “construção”* que Maria Montessori usava, encontra hoje apoio em alguns autores modernos,** que o preferem, em vez da palavra “desenvolvimento”. Seja como construção, seja como desenvolvimento, a pedagogia montessoriana leva o educando à expressão pessoal, própria, singular, nas atividades sociais – no trabalho escolar, na recreação, na vida profissional, enfim, onde houver vida. Sua pedagogia tende para o “élan” vital, sem ser, filosoficamente, vitalista. Para melhor compreensão da pedagogia montessoriana, no que diz respeito as atividades (usadas, principalmente, com os alunos de Jardim de Infância),*** é preciso conhecer as principais colocações científicas de Maria Montessori, resultantes, em parte, de sua formação e experiência de médica, complementadas pelo senso prático da educadora. Numa tentativa de síntese, eis alguns aspectos importantes a ressaltar no conjunto da pedagogia montessoriana, para melhor se entender o sentido profundo que ela deu as atividades de socialização da criança.

3.1 A questão social da criança
Eis um título que, nos começos do século XX, poderia parecer utópico a educadores e até mesmo a psicólogos e a sociólogos acostumados com essa linguagem. Seria, para muitos, uma temeridade, pois numa época em que as medidas de higiene mental começavam a ser tomadas pelos países mais adiantados, pareceria um avanço desnecessário incursionar no campo dos direitos da criança, como Maria Montessori o fez, sem medo das críticas. Daí o nome de algumas escolas montessorianas, como p.ex., “Constructor Sui”, em funcionamento em vários países, inclusive no Brasil. A esse respeito ver o no. 20 da “Revista da AEC” (“Criança, educadora de si mesma”), em especial o artigo da p. 3 à p. 10. ** A. Portmann, citado e comentado diversas vezes por Helena Helming, seria dos que preferem o termo construção ao termo desenvolvimento. Questão de gosto ou de tendência, numa terminologia pedagógica que, cada vez mais, procura apoiar-se nas pesquisas psicológicas. Aliás, um relacionamento produtivo: a pedagogia apoiada na psicologia. É uma fase fecunda para a pedagogia que se enriquece com a contribuição da pesquisa pura e aplicada, rompendo o esquema demasiado formal de um didatismo monopolizador das atenções do professor. *** Os termos “socialização” e “socializantes” tem sentido estritamente pedagógico, significando aquelas atividades que conduzem as crianças à convivência social, através de jogos e trabalho em grupo. Desse modo, as crianças superam a fase egocêntrica e individualista, através de atividades criadoras, em grupo, integrando-se, socialmente. Ela, quando abordou “a questão social da criança”, no livro “A Criança”, usou de uma linguagem clara, objetiva e sem sentimentalismos, chamando à responsabilidade os pais, os educadores e os administradores públicos para a importância da questão. Dizia Montessori que o adulto “tinha esquecido de preparar uma ambiência para a sua criança”. E acrescentava: “Na organização social, esqueceu o seu filho. Na elaboração das leis sucessivas, deixou seu próprio herdeiro sem leis e, por conseqüência, fora da lei”. Criticou, de modo igualmente claro, a situação social vigente, ao dizer que a posição da criança era “a de um homem sem direitos cívicos e sem ambiência própria: um extrasocial”. Não se limitava, porém, Maria Montessori, às críticas. Insistia na validade daquilo que denominou, de modo categórico, de “questão social da criança”, para ser levada avante, não apenas por educadores, mas pelos políticos e administradores públicos. Assim, escrevia: “É preciso ter em conta o alcance do movimento social em favor da criança, pois tem uma imensa importância para a sociedade, para a civilização e para a humanidade inteira”. Em outra passagem, escrevia como que profeticamente: “Sim, esta reforma é grande; ela anuncia novos tempos, uma nova era da civilização”. Concluindo seu pensamento, declarava Maria Montessori, com firmeza: “A questão social da Criança faz-nos penetrar nas leis da formação do homem, ajuda-nos a criar uma consciência nova e, por conseqüência, a dar uma nova orientação à nossa vida social”. Bem se pode inferir, hoje, como foi importante essa formulação de princípios de Maria Montessori para preparar intelectual e até politicamente uma mentalidade, entre educadores, políticos e administradores públicos da educação, para a Declaração Universal dos Direitos da Criança, que, nos dias atuais, está consubstanciada em um documento jurídico de alcance internacional. Diante o exposto, bem se pode perceber qual a repercussão prática, na pedagogia montessoriana, dos aludidos princípios que ela adotou, com marcos fundamentais da atitude de respeito à criança e de preservação dos seus valores de pessoa. A partir daí é possível analisar outro aspecto importante de sua pedagogia:

3.2. O estudo da natureza humana e da sociedade atual
Maria Montessori achava que se a ciência começasse a estudar profundamente a natureza humana, conseguiria não apenas fornecer novas técnicas para a educação (de criança e jovens), como chegaria a uma melhor compreensão dos fenômenos humanos e sociais, que, no seu modo de entender, no seu tempo, ainda estavam imersos na obscuridade. Daí, afirmava que a “base da reforma educativa e social, necessária aos nossos dias, deve ser construída sobre o estudo científico do homem desconhecido.” É admirável que a educadora e médica italiana tenha valorizado, na sua época, o estudo do subconsciente, que quando escreve, em uma das passagens do seu livro já citado, que o estudo do subconsciente representa uma descoberta profunda.* Daí porque, centrada na criança, que é capaz de aprender, a pedagogia montessoriana revela, da parte da autora, um adequado conhecimento da conduta infantil, resultante esse conhecimento, em parte, das suas variadas e multiformes experiências de médica, em contato com crianças de precárias condições sócio-culturais, nos bairros pobres em que trabalhou com infra-dotados. A natureza humana, por isso, não lhe era estranha, nem era considerada à base de meras teorizações, porquanto a sua vivência pessoal, quotidiana com problemas de saúde e educação constituía um dos fundamentos da sua pedagogia “natural”, mas não naturalista. É um aspecto insuficientemente conhecido e divulgado (pelo menos no Brasil), da obra montessoriana, que sugere, todavia, entre outras coisas, uma boa pesquisa documental, para se analisar uma possível influência de Freud na pedagogia de Montessori. A esse propósito, conversei, e 1976, com a educadora norteamericana, profunda conhecedora da pedagogia montessoriana, Dra. Lena Gitte Eis porque a pedagogia montessoriana, pela sua estrutura, leva o educando a situação em que a socialização é estimulada, vigorosamente, através de jogos, brinquedos, ações conjuntas, no plano didático, condução de experiências com participação de grupos etários e sociais diferentes, tudo dentro de uma visão de valorização social da pessoa humana. Tais procedimentos levam o educando, sobretudo a criança, nos seus primeiros anos de formação, a uma interação social, efetuada não apenas na sala de aula, o que, obviamente, já seria desejável, mas à complementação dessa atitude social de interação, em experiências mais amplas e diversificadas, em clubes, na igreja, na prática de esportes e de outras atividades de cunho marcadamente social. Esse modo de conceber a educação, com enfoque social, chegando ao que a pedagogia montessoriana denominou de “socialização” das atividades pedagógicas, não era comum, naquela época do século, não obstante as iniciativas dos sistemas de Pestalozzi e de Frobel, conduzidas, todavia, em diferentes bases daquelas que Montessori adotou, na concepção teórica e na “práxis” educativa do seu sistema. A valorização do social no contexto da sua pedagogia levaria Montessori a uma preparação das crianças ao exercício social da cidadania. Essa, aliás, é uma das provas da extraordinária lucidez intelectual da educadora, que conseguiu realizar, no plano da prática pedagógica, uma das suas geniais antecipações, porquanto soube comunicar aos professores e aos pais, com que lidava, o valor da cidadania, na formação do homem consciente. Sua contribuição, nesse particular, é relevante, o que se pode depreender de uma de suas afirmativas: “A educação é um fato social e humano; um fato de interesse universal”.

3.3. A educação e a solidariedade humana
A concepção pedagógica montessoriana leva em conta, e com seriedade, a relação humana existente entre o educador e a criança, constituindo essa atitude fundamental uma das características dessa pedagogia realmente centrada na criança. Com referência a esse relacionamento existente entre o educador e a criança, e entre as crianças de uma classe de Jardim, Montessori falou em “sociedade por coesão”, pois ensinava que as crianças estariam unidas, mutuamente, por uma espécie de coesão, daí sendo possível que, através dos jogos e exercícios espontâneos, aqueles grupos etários se constituíam como pequenas comunidades de ação. É necessário, alertava, que o educador esteja consciente dessa conduta e dessas atitudes espontâneas, ajudando a construção social das pequenas comunidades. Daí a importância que Montessori atribuiu aos chamados “exercícios da vida prática”, os quais predispõem, facilitam e promovem a integração gradual dos alunos nas experiências de comunidade. São esses exercícios que ajudam a criança a amadurecer não apenas individualmente, (através do desempenho da atenção, da memória, da percepção, do raciocínio), mas, socialmente, através da vivência em grupo, com a troca de experiências diversificadas, a partir mesmo das diferenças individuais das crianças; o que, no seu entender, resultava no enriquecimento da experiência. O trabalho espontâneo da criança tanto na escola, como em casa, irá conduzi-la à experiência social, uma vez preparada pelos exercícios, para a convivência social e solidariedade humana. Não obstante os cuidados que Montessori teve, ao considerar esses aspectos tão relevantes da educação, houve quem julgasse a sua pedagogia voltada para o individualismo, o que não parece uma crítica consistente. Assim Montessori procurou, desse modo, valorizar o relacionamento do professor com a família dos alunos, como uma das formas e expressões de vivência da problemática dos mesmos alunos. Vale mencionar que, há poucos anos, o “Bureau” Internacional de educação e outras entidades, ligadas à UNESCO, promoveram, em memorável assembléia internacional de educadores, estudos em profundidade sobre “O meio social dos alunos”, fato que vem colocar, em maior relevo, esse aspecto de abertura e inovação da pedagogia montessoriana. Tamanha capacidade de visão social do problema da educação assegura, ao sistema Montessori, como hoje é denominado por autores de boa categoria intelectual, como é, p. ex., Helena Helming, uma posição de avanço ou de vanguarda, pela atualidade que o caracterizou, nas primeiras décadas deste século, rompendo velhos preconceitos pedagógicos então vigentes. Saudado, por uns, pela modernidade de suas inovações, criticado por outros, por ser “naturalista”, “vitalista”, e até “individualista”, o sistema Montessori não é indefensável, como, de resto nenhum sistema pedagógico o seria. Resiste às críticas de uns e de outros contraditores, porém resistirá, melhor, à evolução que o tempo impõe, se os seus propagadores souberem ser abertos à inovação, como o foi Maria Montessori. Nem o material Montessori, que ela mesma idealizou, nem as suas tomadas de posição na área da didática devem cristalizar-se em um sistema fechado à mudança e à criatividade. Poucos educadores europeus do início deste século tiveram a coragem e até a audácia de inovar, em ensino, como Maria Montessori. Além disso, o bom senso e a perspicácia do seu espírito levaram-na a aproveitar ensinamentos e sugestões da natureza e da vida, em um sistema de ensino e educação, em que a liberdade foi considerada um dos valores essenciais. Médica e educadora, Maria Montessori, dentro das limitações que ocorreram no seu trabalho, conseguiu realizar, de algum modo, aquela harmonia da alma e do corpo que Platão preconizava, nos seus diálogos, especialmente na narrativa do “Symposion”. Cabe aos montessorianos de hoje, da época da civilização tecnológica, o contínuo repensar das teorias e experiências, que foram defendidas e vivenciadas por Montessori e seus colaboradores iniciais. Essa reflexão, profunda e construtiva, é tarefa que se impõe, como um dos modos de atualização da pedagogia de Montessori.

FONTE: http://www.fundaj.gov.br/licitacao/individuacao_socializacao.pdf